domingo, 8 de outubro de 2006

]da gaveta de guardados 5 (200?)

LADRIDOS E LADRILHOS

Foi longo o período de gestação do escrito seguinte. Hoje o tempo urge para que a memória não se apague. O ensaio era quase diário, no fundo sabia que só a morte traria-me ao papel. Não a morte da casa e sim a do velho cão, única quase-vida ali presente.
Raramente ouvia-se um ladrido rouco, desanimado, raramente caminhava; desconfiava-o cego, de faro apurado mesmo que gasto (um dia olhava com o focinho para uma dupla curiosa nos balaústres).
De seu posto de comando (o velho alpendre) sentiu a demolição de meio quarteirão à sua frente, feita na surdina, pelas entranhas, e na janela do outro lado da rua não via o céu que aparecia bonito pelo vão e o equilibrista operário de marreta na mão.
Cheirava mal, cheiro de cachorro molhado, e era já velho, meio desdentado. Despertava compaixão que vez ou outra aparecia em forma oriental, meio rabugenta: uma japonesa vinda de não sei onde (pois que a casa achava desabitada, sem ter a certeza disso).
Hoje ia passando desatencioso pelo local se não fosse um casal cuja menina de olhar melindrado reclamava: era ali que ele ficava... Não havia mais papelão ou madeira, não havia mais o cão. Os gastos ladridos dando lugar aos novos ladrilhos... Sim porque o piso em quadriculado alvi-rubro brilhava contrastando com as velhas paredes desbotadas do alpendre.
Aturdido continuei a caminho da padaria, celular tocou, conversa de amigo, o suco e o café de sempre e na volta ia passando desatencioso quando uma bela morena atravessava a rua e meu olhar voltou-se para a esquina já dobrada. Não vi mais a mulher, só enxergava agora o alpendre primaveril, brilhando.

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