sábado, 30 de setembro de 2006

melancolia de outro sábado

Mesa de restaurante no centro. O velho humorista agora usa tablete Santo Antônio. A puta que o acompanha faz pose. Seu irmão saca do celular e registra tudo, no intervalo da mijada alheia. Em seguida o dj liga para confirmar o evento de entrega das chaves de um imóvel no interior. E o garçom avisa ser o novo mais velho da casa (trinta e três anos). Morreu aquele que nos serviu da última vez? - a gordinha saliente.
Um pouco antes o agito na velha livraria, da proprietária mais nova: ele só trabalha agora com sei lá o que. Procuro na internet? Vamos vender os móveis...
Volto para casa penso, sentindo o peso de uma decadência que nem a reforma da fachada do antigo hotel pode aliviar.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

côvado

com que metro se poderá medir a distância segura das virilhas alheias?

a benção

Apesar de minha adaptabilidade ao meio tenho índole caipira. Aprendi com meu pai a admirar bois nos pastos, que ladeavam as longas estradas das viagens da infância.
Outro dia ele mostrou-me as mãos raladas, distraído tropeçou num cupim.

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

eterno, absoluto




"Fosse eu a natureza não teria feito os homens e as mulheres semelhantes a símios grandes, como acontece, mas tomaria como modelo os insetos que, após uma vida de lagartas, transformam-se em borboletas e durante o breve espaço final de suas vidas não têm outro pensamento a não ser amar e encantar. Colocaria a mocidade no fim da existência humana... Então eu teria disposto as coisas de modo a que o homem e a mulher, desdobrando rutilantes asas, vivessem por algum tempo de orvalho e desejo e morressem num beijo inebriante".

Anatole France, desenho de Mariana Zanetti

(da série poesia na rua, 2

horário comercial, dia qualquer - anunciantes da rua são bento)

ó-
ti
caó-
ti-
caótica
ótica...

(para conocermos mejor) Colômbia, 1

calçada - coisa boa, dois reais cada, pra renovar a estante, livro tem que circular.
escolha - estes três, dez reais, três reais, pegue mais um e veio:

Antologia poética Brasil-Colômbia: para conocermos mejor. GONÇALVES, A. J.; ROCA, J. M. (Org.). São Paulo: Ed. UNESP/ Santa Fé de Bogotá: Aseuc, 1996.

INVASIÓN DE LA MEMORIA
Joaquín Mattos Omar

¿Evaluar a cada tanto lo vivido
cada último trozo de pasado?
¿O dedicar el alma siempre
y únicamente a proyectar lo que vendrá
a soñar lo por venir?
¿Entregarse al diario íntimo
que al detal registra lo ocurrido
o estar todo el tiempo expectante
de lo que va a ocurrir?
¿La persitencia da la memoria
o la promessa de las experiencias inéditas que
acechan?

Sabemos que lo que fue
surte más pesares que dichas,
más zozobras que afianzamientos.
Pero el pasado, su contenido irrevocable,
nos invade cada vez más
va creciendo como una manigua
en medio de nuestra respiración
sumando una a una sus hojas
- mera basura anecdótica -
con el vértigo con que se suma en los bancos el papel
moneda

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

(da série poesia na rua

19:54/27.set.06 - meninos de rua se deitando na praça da república)

se educa aí, se educa aí!
cê nunca ouviu falar em tupi.
cê nunca ouviu falar...

são cosme e damião














Falange do erê
Arlindo Cruz - Jorge Carioca - Aluísio Machado

Só quem acredita vê
Que essa vida é um doce
Mesmo se não fosse
Eu seria assim
Sou menino brincalhão
Encontrei a chance
Bem ao meu alcance
E a agarrei pra mim

(Eu dou)

Viva Cosme e Damião, doum (doum)
Viva Cosme e Damião
Viva Cosme e Damião

O que importa é que a gente miúda
Me trouxe ajuda, quando eu precisei
E o que prego nas minhas andanças
Que só as crianças me ditam a lei

E assim me sinto protegido
Ungido com a viscosidade da fé
Sua benção é presença imensa
Que vença com a crença que tem seu axé

(Eu dou)

Viva Cosme e Damião, doum (doum)...

Da vida tão amargurada
Essa gurizada me fez renascer
Hoje sou cobra criada
Salve a ibejada falange do erê

Vinte e sete de setembro
Eu sempre me lembro, não esqueço de dar
Cocada, paçoca, suspiro, pipoca
Bola, bala, bola, cuscuz e manjar

(Eu dou)

Viva Cosme e Damião, doum (doum)...

arrendamento

Uma semana, um mês, alguns dias, a primeira quinzena: definitivamente o tempo não é linear...
Estas paragens aqui foram arrendadas de Ariovaldo, descendente de família de latifundiários mexicanos que em meados do século passado começaram a comercializar bebidas frutais. Era um antigo sítio herdado dos pais, que aportaram no Brasil com ele criança, depois que o avô materno vendeu a empresa e as terras próximas ao lago Texcoco para os Albarran, em 1978. A queda constante do preço da arroba bovina no mercado o fez desistir do confinamento, mudou-se para a cidade, onde acabou sendo eleito prefeito.

Conheço Ariovaldo desde sua chegada ao país e nossa amizade tem desafiado o tempo. Reencontramo-nos recentemente, após um quadriênio, através de um amigo comum, havia muito também não visto. Ele contou-me sua história recente e dos desafios de ser alcaide; bem como do abandono do sítio, no qual passáramos momentos felizes de nossa infância. Contei-lhe também de minha recente separação conjugal e da intenção de viver na roça novamente, apesar de minha alergia ao mato.
Resultado: aluguei este sítio onde hoje pasta minha memória.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

comer mingau

Irene

[Manuel Bandeira]


Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor

Imagino Irene entrando no céu:
- Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

[Caetano Veloso]

Eu quero ir minha gente
Eu não sou daqui
Eu não tenho nada
Quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada

Irene ri, Irene ri, Irene
Irene ri, Irene ri, Irene
Quero ver Irene dar sua risada

sair ao sol

Lembro-me daquele conselho do amor distante, amiga sempre tão próxima: é necessário fechar uma porta para outra abrir. Não será diferente agora, já não foi.
Acordei com a cabeça em carrossel, cavalos em círculo e brilhos múltiplos. Zorro zonzo ou Tonto.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

]da gaveta de guardados 4 (200?)

MEMÓRIA

e quando o meio meio que conspira
e a poesia nos espera em velha casa
(à espera dos bárbaros) os gregos
iris crepuscular ou tardo brilho e não desfecho
cofre tranca talco em dólar prata referido
ou ágora, agora encontro em agonia
de pássaros, de petardos, de pessoas
ao som do pequeno atabaque

a porta que bate, o homem que assovia

Enquanto pensava na sorte do dia, lembrei-me dos sórdidos aposentos de um médico do interior, diretor de um hospital, desses que fazem questão de ser chamados de doutor. Na instituição, para chegar até a sua private room era necessário passar por algumas secretárias desconfiadas e alguns corredores. Uma vez lá, mesa de reunião ao centro, o distraído, mesmo que atento, não sabia mais o caminho de volta. E da sala octogonal ou sextavada (já se vão tantos anos) portas em cada uma das direções: a de entrada, outra da provável saída exclusiva, outras tantas acessando outras private rooms, já nem tão públicas. Uma mini-academia vislumbrada pelo vão de porta entreaberta, o espelho no teto imaginado em outra sala qualquer.
Isso tudo pra dizer que hoje ouvi uma porta bater no labirinto em que me encontro e saí assoviando, sem saber bem de qual delas se tratava.

domingo, 24 de setembro de 2006

]da gaveta de guardados 3 (2002)

GENÉTICO

de meu avô:
- a criptografia popular
que mantenho como código
- a simpatia do mascate
que mantenho como código
- o gosto pelo riso
que mantenho como código
- a carne de porco
que mantenho como código

de minha avó:
- o código de ética!

qualquer

As canções do novo álbum de Arnaldo Antunes tocam, assim como foi emocionante o show de bolso da semana que passou, mesmo sem a presença do Scandurra, o danado que musicou o Copan.
Preso ao trânsito do fim da tarde num ônibus, aterrisei na livraria com lotação total e trombei, por sorte, com amiga querida (eu cada vez mais convencido do valor do imponderável no encontro).
Café, que senha já não nos restava, conversas em dia, ela se foi e eu retornei já da calçada pra dar uma espiada. Atraso, e não é que ainda vi quase tudo, uma beleza, expressão simples do elaborado: "atenção para escutar o que você quer saber de verdade".

sábado, 23 de setembro de 2006

Atrás dos olhos das meninas sérias

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que jamais repousam?


Ana Cristina Cesar, A teus pés

primavera

No macrocosmos tudo desabrocha e até ocorre um encontro significativo: sinal cuidadoso, floral. No micro só confusão com mais um quê indiano de outro algo já escrito, devassa. E sigo me aprumando, fruto maduro e aí viro suco. Foi tanta a simpatia no pedido que a simpática criatura ao meu lado, tão próxima! O mundo ainda vale a pena se a/há alma... E do resto do inverno ainda resiste a rosa alva no jarro de cristal, nenhum botão vermelho se abriu e aquele mesmo caiu no derradeiro quase primeiro dia. Queimados todos os seis, postos a secar noutro vaso, de vidro suando, cheirando a morte.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

odeio

cê, caetano veloso


veio um golfinho do meio do mar roxo
veio sorrindo pra mim
hoje o sol veio vermelho como um rosto
vênus diamante-jasmim
veio enfim o emeio de alguém

veio a maior cornucópia de mulheres
todas mucosas pra mim
o mar se abriu pelo meio dos prazeres
dunas de ouro e marfim
foi assim, é assim, mas assim é demais também

odeio você, odeio você, odeio você
odeio

veio um garoto do arraial do cabo
belo como um serafim
forte e feliz feito deus, feito um diabo
veio dizendo que sim
só eu, velho, sou feio e ninguém

veio e não veio quem eu desejaria
se dependesse de mim
são paulo em cheio nas luzes da bahia
tudo de bom e ruim
era o fim, é o fim, mas o fim é demais também

odeio você, odeio você, odeio você
odeio

]da gaveta de guardados 2 (2002?)

ROMANCE INTERROMPIDO
"O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu."
Caio Fernando Abreu: Anotações sobre um amor urbano
Introdução
Procurava uma pena que desse cheiro na letra, capaz de vazar um pouco o encantamento que prendia-me no interior do espelho. Estado de vigília em rito de passagem, memória falha de momentos infantis.
Ela sempre indiferente ao cerco. Insatisfeita com seu corpo não se olhava nem tocava-se.
I
Saco do cesto alva camiseta molhada de suor e uma calcinha dura de sabonete. Penduradas no registro outras duas calcinhas respingam o banho de há pouco. Um raio de sol rasga-me o joelho esquerdo. A casa cheira café em manhã de noite mal dormida.
II
Atrás da porta do quarto imagino-a nua em frente ao espelho. Não me responde. No lixo do banheiro embalagens de camisinha, um frasco vencido de remédio e o sangue espalhado em trouxinhas de papel higiênico.
III
E havia um barulho turvo em seus olhos que não pude deixar de notar. Uma inaptidão aos afazeres domésticos causada pela inflamação na omoplata. Pratos empilhados pia afora e uma fina camada de pó negro sobre os livros da sala.
IV
Três dias sem notícia, toca o telefone. Podíamos ir ao cinema, filme francês que você vai amar. É que estou atrapalhado (...) a que horas mesmo? Táxi! E ela nem apareceu.
V
Era cedo, eu aparecendo de surpresa: pés no chão, roupa de dormir: calça de algodão revelando contornos e uma blusinha listrada deixando aparecer longo caminho desde o umbigo.
VI
Entre os vãos dos botões da camisa eu busco um ângulo de visão para aquela auréola atrevida. Neste instante o mundo todo é um grande seio como no Amante Minguante do Almodóvar.
VII
A primeira grande surpresa foi vê-la de biquini branco em dia de sol. Guardarei pra sempre este entumecimento imediato de olhos em ziguezague.
VIII
Outro dia na cachoeira resolveu ficar pelada. Sentiu-se livre, a massagem da água deixou-a molhadinha. Foi surpeendida por uma borboleta amarela.
IX
Entre o coque e o cóccix uma cicatriz na baixa clavícula chamava-me. As alças de silicone do sutiã desnecessário eram incapazes de ocultá-la nos cruzamentos cotidianos.
X
Nem sei quanto tempo entre um cochilo e outro. O que era um minutinho fez-me atrasado outra vez. Interrompi a música e saí batendo a porta da sala.
XI
Foi mostrar-me a barriga já não mais tão bela. Deixou-me ver a dobra de início do seio direito enquanto a calcinha pulava pra fora da calça.
XII
Ouço agora já noite a música matinal do balé. Nossos corpos juntos numa rede que balança. Sinto seu cheiro, estou feliz.
XIII
Surpreendeu-me num salto infantil de abraço gostoso enquanto o sol brilhava iluminando-lhe a face sorridente de quem recorda um beijo desnecesário.
XIV
Em sua inquietude toco-lhe o seio esquerdo com a orelha direita, como quem procura por baixo dos panos o sinal vital do coração, batidas ritmadas.
XV
Observava-lhe as pernas, depilação por fazer. Pêlos próximos duplicados, linhas de força por muitos lados. Incomodava-lhe sobretudo aqueles do tornozelo que eu tinha vontade de arrancar nos dentes.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

relação com o cliente

Depois do bate-bola na varanda (em grama sintética) e do x-salada (no pão de hambúrguer) ele revolucionou meu cotidiano ensinando-me nova amarração do cadarço (do tênis adidas). Dura toda uma semana: orelhinhas, laço vai, laço vem, aprendida na internet...

exercícios poéticos de retomada (inconclusos)

COMO SERÁ
rubra arde a face e sinto
lágrimas evaporando dos olhos


MOSAICO BIZANTINO
na butique cristã
a irmã burla o fisco

DA MULHER QUE NÃO ESTAVA LÁ
quase-nuvens luminosas
ou quase-sombras
como no passa-sete, barcos da infância

A MULHER QUE NÃO ESTAVA LÁ
deusa urbana, simulacro em Dylan
estrelas de uma extremidade à outra

não me queixo, o da gueixa

nome aos bois

"Está na tua boca, na minha boca, a palavra que eventualmente se converterá em beleza. Ou não." [Ferreira Gullar]