sexta-feira, 22 de setembro de 2006

]da gaveta de guardados 2 (2002?)

ROMANCE INTERROMPIDO
"O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu."
Caio Fernando Abreu: Anotações sobre um amor urbano
Introdução
Procurava uma pena que desse cheiro na letra, capaz de vazar um pouco o encantamento que prendia-me no interior do espelho. Estado de vigília em rito de passagem, memória falha de momentos infantis.
Ela sempre indiferente ao cerco. Insatisfeita com seu corpo não se olhava nem tocava-se.
I
Saco do cesto alva camiseta molhada de suor e uma calcinha dura de sabonete. Penduradas no registro outras duas calcinhas respingam o banho de há pouco. Um raio de sol rasga-me o joelho esquerdo. A casa cheira café em manhã de noite mal dormida.
II
Atrás da porta do quarto imagino-a nua em frente ao espelho. Não me responde. No lixo do banheiro embalagens de camisinha, um frasco vencido de remédio e o sangue espalhado em trouxinhas de papel higiênico.
III
E havia um barulho turvo em seus olhos que não pude deixar de notar. Uma inaptidão aos afazeres domésticos causada pela inflamação na omoplata. Pratos empilhados pia afora e uma fina camada de pó negro sobre os livros da sala.
IV
Três dias sem notícia, toca o telefone. Podíamos ir ao cinema, filme francês que você vai amar. É que estou atrapalhado (...) a que horas mesmo? Táxi! E ela nem apareceu.
V
Era cedo, eu aparecendo de surpresa: pés no chão, roupa de dormir: calça de algodão revelando contornos e uma blusinha listrada deixando aparecer longo caminho desde o umbigo.
VI
Entre os vãos dos botões da camisa eu busco um ângulo de visão para aquela auréola atrevida. Neste instante o mundo todo é um grande seio como no Amante Minguante do Almodóvar.
VII
A primeira grande surpresa foi vê-la de biquini branco em dia de sol. Guardarei pra sempre este entumecimento imediato de olhos em ziguezague.
VIII
Outro dia na cachoeira resolveu ficar pelada. Sentiu-se livre, a massagem da água deixou-a molhadinha. Foi surpeendida por uma borboleta amarela.
IX
Entre o coque e o cóccix uma cicatriz na baixa clavícula chamava-me. As alças de silicone do sutiã desnecessário eram incapazes de ocultá-la nos cruzamentos cotidianos.
X
Nem sei quanto tempo entre um cochilo e outro. O que era um minutinho fez-me atrasado outra vez. Interrompi a música e saí batendo a porta da sala.
XI
Foi mostrar-me a barriga já não mais tão bela. Deixou-me ver a dobra de início do seio direito enquanto a calcinha pulava pra fora da calça.
XII
Ouço agora já noite a música matinal do balé. Nossos corpos juntos numa rede que balança. Sinto seu cheiro, estou feliz.
XIII
Surpreendeu-me num salto infantil de abraço gostoso enquanto o sol brilhava iluminando-lhe a face sorridente de quem recorda um beijo desnecesário.
XIV
Em sua inquietude toco-lhe o seio esquerdo com a orelha direita, como quem procura por baixo dos panos o sinal vital do coração, batidas ritmadas.
XV
Observava-lhe as pernas, depilação por fazer. Pêlos próximos duplicados, linhas de força por muitos lados. Incomodava-lhe sobretudo aqueles do tornozelo que eu tinha vontade de arrancar nos dentes.

Um comentário:

Anônimo disse...

o amor absoluto, enfim. aconselho a leitura a todos, feita como reza a cada santo dia antes de sair de cama.
A.